8 de novembro de 2010

O velho papo da saúde...

Imagino que muitos já devem ter assistido ao documentário SICKO, de Michael Moore. Produzi uma resenha sobre o filme que talvez não faça muito sentido para quem não assistiu, pois a escrevi embasada na reflexão do diretor. Mas o documentário está na íntegra no youtube, é só ir caçando as partes em sequência.

Diante de um dos temas mais polêmicos e atuais da agenda estadunidense, a Saúde ( com "s" maiúsculo!) é um grande negócio! Vejamos para quem...

Abaixo, o trailer e a resenha.
Até!





Há quem questione a relevância do documentário de Michael Moore para telespectadores não-estadunidenses pois, embora a temática da saúde tenha apelo mundial, o objeto analisado pelo diretor denuncia um problema doméstico de seu país. Sem dúvida, o método comparativo apresentado no filme, e as próprias reflexões do narrador-autor, indicam um exercício de auto-análise que a princípio não nos diz respeito. Porém, o grande trunfo do documentário reside justamente na exploração desta brecha existente entre a temática de alcance privado e a de interesse de todos. A despeito de inúmeras referências internas – como nome de empresas, siglas, personalidades e processos jurídicos que só fazem sentido no universo amerciano – o estudo rompe com o possível equívoco da linguagem exclusiva para obter grande atenção onde quer que seja assistido.
Mais interessante do que a própria discussão sobre o sistema de saúde pública no Estados Unidos é o ácido questionamento levantado acerca da moralidade de uma sociedade que, para o bem e para o mal, construiu a maior potência do mundo pós-moderno. Ao se indagar com desesperança “ o que nós nos tornamos?”, Michael Moore passa a questionar não somente a escandalosa política de saúde negligenciada por seu governo, mas todo o complexo cenário em que esta inoperância pôde acontecer . Fica claro o fato de que não basta retomar eventos passados para se compreender de que forma se chegou a tamanho absurdo, faz-se necessário remontar de que maneira se construiu a identidade e a mentalidade deste país.
Esta nação que Michael Moore não reconhece mais é a nação que nascera dos imigrantes britânicos cansados do Velho Continente, que bravamente puseram-se ao mar para fazer surgir o novo-homem em um pedaço de terra virgem, ainda não contaminado pelos vícios da raça humana já disvirtuados da verdadeira essência bíblica. A mesma nação que encarnou o Destino Manifesto como razão de sua existência e que geriu em seu ventre mais do que ninguém o fetiche da democracia e da liberdade. Valores estes que, somados ao protestantismo e ao liberalismo, resultaram em uma miríade de convicções instintivas no imaginário do estadunidense .
A noção liberal do Estado mínimo, levado às últimas consequências pelos governos dos EUA desde a Guerra Civil – salvo em 1929 quando ele se viu obrigado a resgatar o país da sarjeta – deu carta branca às forças do mercado, que floresceram vertiginosamente no sonho americano. É curioso notar o estarrecimento da população quando, séculos depois, deparam-se com o resultado. O temerário sistema de saúde dos Estados Unidos é fruto de um povo que desde sua gênese optou por construir o seu espaço individual em detrimento da coletividade. Esta atmosfera ideológica e jurídica oferecida pelo país fomentou a potencialização da inerente tendência humana à ganância, propagando uma cultura competitiva, sem escrúpulos e baseada na meritocracia.
Este conceito meritocrático é, aliás, uma das grandes armadilhas na mentalidade do país. Há um quê de moralismo subliminar no acesso aos planos de saúde de qualidade. Ao indivíduo cujo espírito empreendedor, alma cristã , sucesso familiar e, consequentemente, boa renda: o acesso a uma ótima cobertura médica. Ao indíviduo que não leu direito a cartilha do bom-americano, que falhou o percursso do sucesso e cujo bolso não acusa o peso dos dólares: a indigência.
Não deixa de ser irônico que logo o país mais militarizado do planeta, tão acostumado com flagelados em diversas modalidades, não tenha um sistema de saúde gratuito e universal.
Das particularidades evidentes nesta falha desumanizadora do Estado norte-americano, a que mais chama a atenção é o cinismo. Desde a grande ‘invenção’ de Nixon que deu vida às empresas de saúde, discursos e propagandas ‘lavaram’ a cabeça da população. Na época em que o mundo possuia duas forças opostas e que o inimigo atendia pelo nome, foi tarefa fácil exlorar o imaginário de uma população aterrorizada pela ameaça vermelha. Os “riscos” da saúde socialista eram iminentes. Nenhum mal poderia ser maior para o futuro dos Estados Unidos da América do que tornar o sistema de saúde universal a toda sua população.
É impressionante assistir como hoje a exploração dessa propaganda funcionou com perfeito êxito. Já se vão vinte anos sem muro e ainda existe fervorosamente a histeria coletiva de se cunhar de “mal” e “comunista” aqueles – como Hillary e recentemente Obama – que cogitam comprar a briga com o lobby farmacêutico-médico, propondor a universalização de seu sistema de saúde.
Talvez tenha sido de fato um dos objetivos desta exploração do temor nas décadas de 50 em diante a catequização primária do povo, de modo que a discussão se esvaziasse por completo. A partir do momento que a população sai às ruas com cartazes e megafones clamando o extermínio daqueles que querem reformar a saúde, chamando-os de comunistas, o debate se invalida, tamanha incongruência. Um discurso tão raso e equivocado se auto-deslegitima, tornando-o instintivo e inquestionável. McCarthy ainda ecoa pelas ruas da América.
Outro ponto interessante do documentário se dá quando diversos membros do congresso e do senado americano discursam para uma platéia entusiamada sobre os benefícios da assinatura de uma nova legislação de remédios. Com um ácido tom de bom-humor, Michael Moore “etiqueta” cada cabeça ali presente com os preços que teriam custado para o lobby da saúde. É sempre curioso quando vemos que a corrupção não é endêmica de países subdesenvolvidos. Em um país que tudo tem seu preço, um bem tão vital é um excelente negócio.
Esta liberdade plena que o estadunidense goza potencializou o espírito competitivo a um patamar tão elevado que nem mesmo o maior dos deveres do Estado é cumprido. As corporações, camufladas por seu tamanho colossal, são desprovidas de moral, tornando-se assim corpos autônomos , sujeitas à lei, é verdade, mas atuantes apesar de qualquer valor, orientadas somente ao lucro.
De todas as realidades contrastadas por Moore no filme, a de Cuba é a mais impactante, por motivos óbvios. As dificuldades financeiras da ilha não são obstáculos para tamanha excelência no atendimento médico gratuito. Soa quase como galhofa a recepção dada aos “heróis” do 11 de setembro, em solo inimigo.
Ao final, acredito que Michael Moore encontra mais perguntas que respostas. Seria essa catastrófica relação do Estado americano com a saúde o resultado de todo este processo de formação da sociedade individualista acima de tudo? Canadá, França, Inglaterra e Cuba causam vergonha ao país mais rico do mundo, justamente na atribuição mais crucial que o Estado deveria ter: proteger a vida de seus cidadãos. Estariam os estadunidenses sofrendo as agruras de um monstro que eles mesmos criaram?
A resposta que Michael Moore nos propões é relativa: sim e não. Sim, por tudo que foi discutido acima, mas não, pelo simples fato de que existem muitos Michael Moore’s nos EUA, bem como tantos outros que nunca foram perguntados de sua opinião, e que assistem décadas após décadas decisões serem tomadas por algumas dúzias de homens brancos, cristãos, ricos e gananciosos que, como bem disse Moore, amam suas mães, mas não tanto a dos outros.

Fernando Burgés Lopes

2 comentários:

  1. Muito interessante a análise! Para variar, eu fico tentando entender como é possível existir um raciocínio que permita esse estado de coisas. Para mim, o que licensia esse pensamento e comportamento é a metáfora da família do tipo PAI RIGOROSO. Nesse modelo de família, como vimos, o papel dos pais é o de fazer com os filhos sejam independentes, auto-suficientes e 'self-reliant', para que dependam apenas de si mesmos para viver. Sendo assim, a noção de um estado provedor é contrária a essa metáfora, e por conseguinte, medidas como a da reforma previdenciária acabam falhando. Como já vimos inúmeras vezes no curso, o argumento lógico, literal, de que há muitas vantagens para a população com a reforma previdenciária, cai por terra não porque não sejam bons argumentos racionais, mas porque a metáfora que guia o pensamento e a ação de boa parte dos americanos não acomoda esse argumento e assim o que parecia 'vantagem' na verdade torna-se uma desvantagem ou até mesmo uma aberração. Além disso, falando de estratégia política, faltam meios de melhor comunicar e 'vender' a ideia da reforma. Somente para ilustrar, podemos ver que o rótulo já colocado pelos republicanos na reforma é Obamacare... ou seja, o frame de Obama (negativo) 'contamina' o frame de 'care' (positivo), e o resultado (negativo) agrega mais carga negativa a Obama... Compare isso a 'Bush tax cuts', que é como os republicanos E democratas se referem às regalias fiscais de Bush. Essa expressão não evoca valor negativo.

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  2. Excelente sacada essa metáfara do "pai rigoroso"!
    Realmente, faz muito sentido na mentalidade do povo americano, e é um frame extremamente comum em filmes e em outros "bens de exportação" da cultura deles. A noção de independência e a de ser trabalhador é muito poderosa, e já começa com a tão comum cena das criancinhas vendendo suco de limão numa barraquinha improvisada, nos jardins de suas casas, nos dias de verão.

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